O departamento médico do Santos passou a conviver em 2025 com graves lesões no ligamento cruzado anterior (LCA), que já atingiram cinco atletas: quatro do elenco profissional e uma das categorias de base. A situação expõe os desafios físicos enfrentados pelos jogadores e reforça os riscos constantes da rotina intensa do futebol.
As atletas que sofreram lesão no ligamento cruzado anterior pelo Santos foram: a goleira Michelle Stildes, em 7 de fevereiro; a meio-campista Mari Feitosa, em 15 de abril; a meio-campista Ingryd Avancini, em 6 de maio; a atacante Ana Barboza, em 20 de maio; e a atacante Julynha, da equipe sub-20, em 23 de maio.
Nesse contexto, o Portal Sereias conversou com o doutor Felipe Kayat, ortopedista e especialista em medicina regenerativa, que respondeu a oito perguntas sobre esse tipo de lesão.

Veja abaixo todas perguntas e respostas do doutor Felipe Kayat:
- Quais são os principais fatores que contribuem para a lesão do ligamento cruzado anterior (LCA) em atletas de alto rendimento?
Felipe Kayat: “A lesão do ligamento cruzado anterior (LCA) é uma das mais temidas no esporte de alto rendimento, principalmente porque costuma afastar o atleta por muitos meses e pode comprometer a performance a longo prazo. Os fatores que contribuem para essa lesão são múltiplos e geralmente se somam.
Do ponto de vista biomecânico, o principal fator é o valgo dinâmico do joelho, que é quando, durante movimentos como saltos, aterrissagens ou mudanças bruscas de direção, o joelho colapsa para dentro. Esse padrão é muito comum em atletas que têm desequilíbrios musculares — como fraqueza dos glúteos, quadríceps ou isquiotibiais — ou déficit de controle neuromuscular.
Há também fatores anatômicos importantes, como um espaço intercondilar estreito (por onde passa o LCA), joelhos em hiperextensão e maior frouxidão ligamentar — todos eles aumentam o risco, mesmo quando o gesto esportivo não é tão agressivo. Vale destacar que as mulheres atletas estão até 6 vezes mais propensas a romper o LCA por questões hormonais, anatômicas e padrões motores específicos.
Outro ponto relevante são os fatores genéticos. Estudos recentes mostram que variações em genes relacionados à produção de colágeno podem influenciar a resistência dos ligamentos. Isso explica por que alguns atletas, mesmo bem-preparados fisicamente, podem sofrer lesões mais facilmente.
Além disso, temos o aspecto funcional: a sobrecarga em atletas que não respeitam o tempo de recuperação, que treinam em excesso ou que competem sem estarem 100% reabilitados após uma lesão anterior. O histórico prévio de lesão no LCA, inclusive, é um dos maiores preditores de nova ruptura — o que reforça a importância de um retorno criterioso ao esporte.
Por fim, a medicina regenerativa tem se tornado uma aliada na prevenção e modulação desses riscos. Utilizamos terapias como o PRP (plasma rico em plaquetas) e células-tronco para tratar microlesões, fortalecer estruturas articulares e até melhorar a qualidade do tecido ligamentar em atletas com sinais de desgaste. Em alguns casos, essas abordagens podem ajudar a prevenir lesões maiores e prolongar a vida esportiva do atleta.
Ou seja, prevenir lesões do LCA exige um olhar multidimensional: biomecânica, genética, treinamento e, cada vez mais, medicina de precisão com foco regenerativo”.
- Existe diferença na gravidade, no tratamento ou na recuperação da lesão de LCA quando comparamos atletas adolescentes, por volta dos 14 anos, com atletas adultos, acima dos 20? O desenvolvimento físico interfere nesse processo?
Felipe Kayat: “Sim, existe uma diferença significativa! Quando lidamos com lesões do ligamento cruzado anterior (LCA) em adolescentes, especialmente entre os 12 e 15 anos, precisamos considerar que eles ainda estão em fase de crescimento. Nessa idade, as placas de crescimento — chamadas fises — ainda estão abertas, o que traz implicações importantes tanto para o tipo de tratamento quanto para os riscos a longo prazo.
No adulto, o protocolo é mais consolidado: se houver instabilidade, a reconstrução do LCA é indicada, geralmente com enxerto autólogo, e o retorno ao esporte segue um cronograma bem definido. Já no adolescente, precisamos adaptar a técnica cirúrgica para preservar as fises e evitar qualquer comprometimento no crescimento ósseo, que poderia resultar em assimetrias ou deformidades.
Além disso, nos últimos anos, a medicina regenerativa tem ganhado espaço como uma alternativa promissora, especialmente em casos agudos e em pacientes com as fises abertas. O uso de terapias biológicas — como plasma rico em plaquetas (PRP) ou células-tronco mesenquimais — pode, em determinados casos, ajudar na modulação da inflamação e estimular a cicatrização do tecido ligamentar, com o potencial de evitar a cirurgia. É importante ressaltar que essas abordagens ainda não substituem a cirurgia em todos os casos, mas podem ser consideradas como parte de uma estratégia personalizada, especialmente nos primeiros estágios da lesão ou quando o exame clínico e as imagens mostram integridade parcial do ligamento.
Em relação à recuperação, o adolescente costuma ter uma resposta biológica mais rápida. No entanto, paradoxalmente, ele apresenta um risco maior de relesão, principalmente se o retorno ao esporte ocorrer antes da completa recuperação neuromuscular. Isso exige um acompanhamento rigoroso, com critérios objetivos de liberação esportiva, além de suporte psicológico — já que muitos adolescentes sentem a pressão de voltar rapidamente à prática esportiva, o que pode comprometer o processo”.

- Após uma cirurgia de reconstrução do LCA, qual costuma ser o tempo médio para um atleta de alto rendimento retornar ao seu melhor nível? E esse retorno representa risco aumentado de nova lesão?
Felipe Kayat: “De forma geral, o tempo médio para que um atleta de alto rendimento retorne ao esporte após a reconstrução do LCA gira em torno de 9 a 12 meses. No entanto, é fundamental destacar que esse número é apenas uma média estatística — o retorno ideal deve ser baseado em critérios objetivos, não apenas no tempo de calendário.
O mais importante é avaliar a recuperação funcional: força muscular equilibrada entre os membros, controle neuromuscular, estabilidade dinâmica, desempenho em testes funcionais e avaliação psicológica. Mesmo que o joelho esteja clinicamente bem, se o atleta não tiver recuperado a confiança, isso pode comprometer o desempenho e aumentar o risco de relesão.
Infelizmente, o risco de nova lesão é real. Estudos mostram que o risco de relesão pode ser duas a seis vezes maior nos primeiros dois anos após o retorno ao esporte, especialmente em atletas jovens e em esportes com mudanças rápidas de direção, como futebol, basquete ou handebol. A pressa em voltar, sem cumprir todos os critérios de retorno seguro, é um dos principais fatores de risco.
Outro ponto importante é que a reabilitação atual não deve focar apenas no joelho operado. A prevenção de relesões passa também por corrigir assimetrias, melhorar a biomecânica do movimento e reforçar padrões de aterrissagem e mudança de direção. Hoje, a fisioterapia esportiva e a preparação física trabalham muito com programas de prevenção de lesões, inclusive com uso de tecnologias como plataformas de força, análise de movimento 3D e testes isocinéticos”.
- Do ponto de vista médico, quais são os maiores desafios na reabilitação de um atleta que sofre uma lesão de LCA?
Felipe Kayat: “A reabilitação de uma lesão de LCA é, sem dúvida, um dos processos mais complexos dentro da medicina esportiva. Embora o procedimento cirúrgico em si esteja bem estabelecido, os maiores desafios estão no pós-operatório, ao longo da reabilitação funcional, que pode durar de 9 a 12 meses ou mais, especialmente em atletas de alto rendimento.
Um dos primeiros desafios é garantir que o processo de recuperação siga uma progressão segura, mas individualizada. Cada atleta responde de forma diferente — e tentar aplicar um protocolo “padrão” pode levar a atrasos ou a riscos desnecessários. É necessário um equilíbrio entre respeitar o tempo biológico de cicatrização do enxerto e estimular o retorno gradual da força, mobilidade e controle neuromuscular.
Outro ponto crítico é o desequilíbrio muscular, especialmente entre os isquiotibiais e o quadríceps. Muitos atletas recuperam a amplitude de movimento rapidamente, mas demoram muito mais para restabelecer a força e o controle motor, principalmente nos movimentos explosivos e nas mudanças de direção. Se esses aspectos não forem devidamente corrigidos, o risco de nova lesão — inclusive no joelho contralateral — aumenta consideravelmente.
O componente neuromuscular e proprioceptivo também representa um grande desafio. A lesão do LCA afeta os receptores de posição e controle do joelho, o que altera os padrões de movimento. Trabalhar para restabelecer essa conexão entre o sistema nervoso e a musculatura, especialmente em situações de alta demanda como o esporte competitivo, é essencial.
Além disso, há o fator psicológico, que é muitas vezes subestimado. O medo de se lesionar novamente, a insegurança no movimento e a pressão por desempenho podem atrasar ou até comprometer o retorno ao esporte. Por isso, o suporte emocional e, em muitos casos, o acompanhamento psicológico, devem fazer parte do processo de reabilitação.
Por fim, um desafio crescente é o retorno precoce às competições por pressão externa — de patrocinadores, clubes ou até do próprio atleta. Voltar antes de atingir os critérios objetivos de retorno aumenta drasticamente o risco de nova lesão. E é aqui que entra o nosso papel como médicos: garantir que a saúde a longo prazo do atleta seja priorizada, mesmo diante das pressões do esporte de alto nível.
Em resumo, os maiores desafios envolvem não apenas a recuperação física do joelho, mas também a restauração completa da função atlética, o equilíbrio muscular, o controle neuromuscular, o preparo psicológico e o gerenciamento adequado do tempo e das expectativas. É um trabalho multidisciplinar, que exige precisão, paciência e muito comprometimento da equipe e do atleta”.

- Em sua experiência, é possível que um atleta retorne 100% igual ao que era antes de romper o LCA, tanto fisicamente quanto mentalmente?
Felipe Kayat: “Do ponto de vista físico, sim, é possível que o atleta retorne ao mesmo nível de performance, desde que todo o processo seja bem conduzido. A cirurgia de reconstrução do LCA, quando bem indicada e tecnicamente bem-feita, associada a uma reabilitação de alta qualidade e retorno gradual ao esporte, permite a recuperação completa da função do joelho.
No entanto, o retorno ao “100%” não é só físico. O grande divisor de águas, muitas vezes, está no aspecto mental. A confiança para executar movimentos de alta intensidade, o medo de uma nova lesão, o impacto emocional de ficar meses afastado… tudo isso pesa. Já vi atletas com joelhos impecáveis do ponto de vista clínico e funcional, mas que hesitam ao mudar de direção ou evitar certas situações de jogo por puro receio.
Por isso, é fundamental que a reabilitação vá além do joelho. O acompanhamento psicológico é uma parte essencial do processo, especialmente nos últimos estágios da recuperação, quando o atleta já está fisicamente pronto, mas ainda não retomou a confiança plena.
Também é importante dizer que o sucesso depende do nível de comprometimento do atleta. Aqueles que realmente se dedicam à reabilitação, seguem as orientações, treinam com disciplina e se envolvem com o processo — esses têm muito mais chances de voltar ao alto rendimento, com segurança e consistência.
Então, respondendo de forma direta: sim, é possível voltar 100% — mas esse “100%” não é só sobre o joelho estar estável. É sobre o corpo estar equilibrado, a mente estar segura e o atleta estar preparado para competir em alto nível novamente. E esse resultado depende de um trabalho multidisciplinar bem estruturado e, acima de tudo, de um atleta comprometido com o processo”.
- Quais são os sinais de alerta que atletas, treinadores e preparadores físicos devem observar para reduzir o risco de lesões no LCA?
Felipe Kayat: “Do ponto de vista clínico e biomecânico, os principais sinais de alerta que atletas, treinadores e preparadores físicos devem observar incluem:
- Desalinhamento nos movimentos dinâmicos
Um dos maiores preditores de risco é o chamado valgismo dinâmico, aquele movimento em que o joelho “entra para dentro” durante saltos ou mudanças de direção. Esse padrão, especialmente em atletas jovens e do sexo feminino, é um marcador importante de risco aumentado de lesão no LCA. - Déficit de força e desequilíbrios musculares
Fraqueza dos músculos estabilizadores do quadril (como glúteo médio) e desequilíbrio entre isquiotibiais e quadríceps são fatores críticos. Os isquiotibiais ajudam a proteger o LCA, então se estiverem fracos ou descompensados, o risco aumenta. - Fadiga muscular acentuada
Atletas que demonstram piora acentuada na qualidade do movimento ao final de treinos ou jogos devem acender um alerta. A fadiga compromete o controle motor e a estabilidade dinâmica, aumentando o risco de movimentos errados e lesões. - Histórico de lesões anteriores
Quem já teve entorses de joelho, mesmo que “sem gravidade”, deve ser monitorado de perto. Pequenas instabilidades podem indicar laxidez ligamentar residual ou déficits de controle neuromuscular. - Falta de coordenação ou controle postural em gestos esportivos
Atletas que “aterrissam duros”, com pouca flexão de quadril e joelho, ou que não conseguem estabilizar bem o corpo após saltos e cortes, estão em maior risco. Esses padrões devem ser corrigidos com treino técnico e neuromuscular. - Retorno ao esporte mal conduzido após lesão
O retorno precoce ou sem critérios claros após lesões musculares, entorses ou cirurgias (inclusive do próprio LCA) é um fator de alto risco. É essencial seguir protocolos baseados em dados objetivos, não apenas no “achismo”.
Hoje, felizmente, temos acesso a ferramentas que ajudam a identificar e intervir nesses riscos — testes funcionais, avaliações biomecânicas, análise de saltos, plataformas de força, entre outros. E mais importante do que identificar o risco, é intervir com programas de prevenção baseados em evidência, como o FIFA 11+ ou o PEP Program, que são simples, acessíveis e extremamente eficazes.
Em resumo, a chave é observar o atleta em movimento. O corpo sempre dá sinais — basta saber olhar. E se o time multidisciplinar estiver atento, conseguimos reduzir muito a incidência dessa lesão, que, embora comum, é altamente prevenível quando trabalhamos de forma integrada”.
- Existe uma predisposição genética ou biomecânica que torna alguns atletas mais suscetíveis a lesões no LCA?
Felipe Kayat: “Existe, sim — e esse é um ponto cada vez mais relevante dentro da medicina esportiva moderna. A lesão do ligamento cruzado anterior (LCA) não depende apenas do trauma ou do gesto técnico em si. Há fatores intrínsecos do próprio atleta que aumentam a sua suscetibilidade, e esses fatores podem ser tanto biomecânicos quanto genéticos.
Do ponto de vista biomecânico, alguns padrões de movimento são reconhecidamente de maior risco. Um exemplo clássico é o valgismo dinâmico, que ocorre quando o joelho “entra” para dentro durante saltos, aterrissagens ou mudanças bruscas de direção. Atletas que apresentam esse padrão — geralmente relacionado à fraqueza de glúteo médio, encurtamento muscular ou desequilíbrio entre quadríceps e isquiotibiais — estão mais propensos a romper o LCA, mesmo em situações sem contato.
Outro fator é a hipermobilidade articular. Atletas que têm muita elasticidade nas articulações — o que em alguns esportes pode até parecer uma vantagem — podem ter maior instabilidade passiva no joelho, o que aumenta o risco em movimentos de alta exigência.
Já no campo genético, a ciência ainda está em desenvolvimento, mas já existem evidências mostrando que algumas variações genéticas (polimorfismos) estão associadas a maior fragilidade ligamentar e colágena. Isso significa que a estrutura do ligamento em algumas pessoas é naturalmente menos resistente, mesmo com bom condicionamento físico. Além disso, fatores como sexo biológico também entram nessa equação: mulheres têm risco significativamente maior de lesão de LCA, especialmente na adolescência, por uma combinação de fatores hormonais, anatômicos e biomecânicos.
Por isso, hoje a medicina esportiva não trata todos os atletas da mesma forma. Nós buscamos identificar esses fatores de risco individuais para atuar de forma preventiva. Avaliações funcionais, testes de salto, análise de movimento e até, em alguns casos, mapeamento genético, já fazem parte da rotina em centros de excelência.
O mais importante é entender que nem toda lesão é “azar” ou “fatalidade”. Muitas vezes, o corpo já dava sinais — e quando conseguimos identificar esses sinais com antecedência, conseguimos atuar antes da lesão acontecer”.
- Existe uma forma de prevenir esse tipo de lesão?
Felipe Kayat: “Sim, e felizmente a prevenção das lesões no ligamento cruzado anterior tem avançado muito nos últimos anos. Hoje sabemos que o fortalecimento muscular específico — principalmente dos isquiotibiais, glúteos e core — aliado ao treinamento neuromuscular e à correção biomecânica pode reduzir drasticamente o risco de ruptura do LCA. Conforme citado anteriormente, programas como o FIFA 11+, por exemplo, mostraram-se eficazes em diminuir a incidência dessas lesões, especialmente em esportes com mudanças rápidas de direção, como futebol, basquete e handebol.
Além da prevenção clássica, a medicina regenerativa tem ganhado espaço, não apenas como tratamento, mas também como aliada na modulação de risco em atletas com histórico de lesões ligamentares. O uso de terapias como PRP (plasma rico em plaquetas) e células-tronco mesenquimais tem mostrado resultados promissores no fortalecimento de estruturas articulares, na melhora da qualidade do tecido conectivo e até mesmo na recuperação de microlesões precoces que poderiam evoluir para quadros mais graves.
Também utilizamos a medicina regenerativa em programas de recondicionamento de atletas com histórico de lesão de LCA, visando melhorar a qualidade do tecido cicatricial, reduzir inflamações crônicas e aumentar a segurança do retorno ao esporte.
Portanto, a prevenção hoje é multidisciplinar: envolve treinamento físico de qualidade, acompanhamento biomecânico, fisioterapia especializada e, cada vez mais, estratégias regenerativas que ajudam a proteger o corpo do atleta de forma mais profunda e duradoura. O objetivo é claro: manter o atleta saudável, competitivo e com longevidade na carreira”.